*Artigo retirado da Revista Eletricidade Moderna – Março / Abril – 2024
Escrito por: Gabriel Luiz Silva Almeida, Normando Alves, João Marcos Belisário Dantas, da Termotécnica Para-raios
Defensores dos captores Early Streamer Emission (ESE) destacam avanços na proteção contra descargas atmosféricas proporcionados pelo uso de tais dispositivos, mas a comunidade científica permanece cética em relação à eficácia desses equipamentos. Este artigo aborda aspectos técnicos dos ESEs, que fomentam o debate entre engenheiros e cientistas.
Os defensores dos chamados captores Early Streamer Emission (ESE) alegam que tais equipamentos possuem uma tecnologia diferenciada, capaz de proporcionar um raio de proteção ampliado em comparação com os captores convencionais. Eles defendem que o captor ESE seria capaz de emitir o líder ascendente com antecipação, se comparado aos captores tradicionais, proporcionando um aumento no raio de proteção do captor. No entanto, a eficácia dos dispositivos ESE é vista com desconfiança pela comunidade científica [1–3]. Além disso, é importante destacar que os ESEs não estão incluídos nas principais referências normativas, como a norma brasileira ABNT NBR 5419-3 [4], a norma internacional IEC 62305-3 [5] e a norma norte-americana NFPA 780 [6].
Como dito, os ESEs não são abordados pela norma internacional de proteção contra descargas atmosféricas IEC 62305-3 [5]. No entanto, eles são contemplados em normas de alcance restrito, como é o caso, por exemplo, de [7], na França, e [8], na Espanha. Por meio da análise do conteúdo da norma francesa NF C 17-102 [7], este artigo busca compreender e examinar as propostas desse documento acerca do ESE.
Nota-se que, desde a primeira versão da norma francesa NF C 17-102, de 1995 [9], há um ponto falho na consideração da velocidade do canal ascendente, que se estende do captor em direção à nuvem. A velocidade empregada de 1 m/µs nos cálculos que determinam o raio de proteção proporcionado por um ESE implica vantagens substanciais desses equipamentos em comparação com sistemas convencionais. Supostamente, um único captor poderia garantir a proteção de uma edificação de grandes dimensões. No entanto, verifica-se que essa velocidade pode estar superdimensionada de 10 a 100 vezes, de acordo com várias medições reais realizadas em todo o mundo [10–13], incluindo o Brasil [14–16]. A correção deste aspecto faz com que a suposta vantagem do ESE seja reduzida a valores insignificantes e seu comportamento assuma o de um captor convencional.
Um argumento frequentemente apresentado pelos entusiastas dos dispositivos ESE é que há medições de velocidade de propagação do canal ascendente que coincidem com o valor estabelecido pela norma francesa. De fato, há uma certa dispersão nos valores de velocidade relatados na literatura. No entanto, quando se trata da integridade de estruturas, equipamentos e pessoas, a melhor escolha não pode ser baseada na sorte e em registros otimistas que resultam em um sistema de proteção menos robusto e potencialmente falho.
O fundamento teórico apresentado pela norma francesa baseia-se principalmente em testes de laboratório que analisaram a antecipação do líder ascendente, comparando-a com uma ponta captora convencional [7]. Entretanto, é importante destacar a discrepância de escala entre o arranjo representado na figura 1 e uma instalação real. No arranjo, a distância H é da ordem de 2 metros, e a distância h, de 1 metro, o que dificulta a extrapolação dos resultados obtidos em laboratório para cenários reais.
Registros de descargas atmosféricas utilizando câmeras ultrarrápidas permitem uma compreensão mais aprofundada do comportamento desses fenômenos. Recentemente, um vídeo capturado no Brasil pela equipe do Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, que ganhou repercussão mundial [17], mostrou que o primeiro líder ascendente a surgir no campo de visão da câmera não correspondeu ao ramo que se conectou ao líder descendente. Essa observação é de extrema importância, pois evidencia que a emissão antecipada do líder ascendente não constitui uma garantia de proteção. Portanto, mesmo que um captor ESE fosse capaz de emitir um líder ascendente antecipado, ainda assim não haveria certeza de que ele seria conectado ao líder descendente.
Levando em conta as deficiências dos sistemas de emissão antecipada do líder ascendente (ESEs),é necessário refletir sobre as implicações da utilização indiscriminada dessa abordagem. Uma apresentação realizada em um relevante congresso internacional [18] mostra a discrepância entre o raio de proteção proposto pelo ESE, instalado de acordo com os padrões estabelecidos pela norma NF C 17-102, e o raio de proteção efetivamente alcançado quando se ajusta a velocidade de propagação do canal ascendente para valores mais realistas. Observa-se redução de até 74% no raio de proteção corrigido em comparação com o raio de proteção estabelecido, segundo as definições da norma, conforme ilustrado na figura 2.
Tradicionalmente, os ESEs são amplamente utilizados em países da Europa Ocidental, como França, Espanha e Portugal. Tais regiões têm baixa incidência de descargas atmosféricas, o que dificulta a ocorrência de incidentes mesmo em sistemas sabidamente subdimensionados. Por outro lado, existem relatos de sucessivos incidentes envolvendo ESEs em regiões com alta incidência de raios, como a Malásia [19, 20], como mostram as figuras 3 e 4. A incidência de raios no território brasileiro é mais próxima do padrão asiático do que do padrão europeu [21]. Portanto, é importante refletir sobre as consequências da ampla utilização desses dispositivos no Brasil.
Antes de considerar a adoção de um dispositivo não amparado pelas normas técnicas vigentes no Brasil, o profissional deve refletir sobre as consequências da desobediência à legislação. A Norma Regulamentadora nº 10 (NR-10),do Ministério do Trabalho e Emprego, estabelece requisitos mínimos e obrigatórios para garantir a segurança dos trabalhadores que direta ou indiretamente interajam em instalações elétricas [22]. De acordo com a NR-10, quaisquer trabalhos envolvendo eletricidade devem observar as normas técnicas nacionais e, na ausência ou omissão destas, as normas internacionais cabíveis. Além disso, a NR-10 menciona diretamente a NBR-5410 [23], que por sua vez cita unicamente a NBR-5419 quando aborda assuntos relacionados à proteção contra descargas atmosféricas.
Cabe ressaltar que, quando a NR-10 cita a possibilidade de adoção de normas internacionais na ausência ou omissão de normas técnicas locais, não há precedentes para a adoção arbitrária de uma norma estrangeira que padronize sistemas ESEs para proteção contra descargas atmosféricas. Primeiramente, isso se deve ao fato de que não há ausência ou omissão, uma vez que o Brasil conta com uma norma técnica específica para o assunto: a NBR-5419 [4]. Caso fosse necessário recorrer a uma norma internacional, esta deveria ser buscada no acervo de organizações suportadas por um conjunto de países, como a Comissão Eletrotécnica Internacional (IEC) ou a Organização Internacional de Normalização (ISO). Nessa hipótese, a referência mais próxima ao escopo seria a norma IEC-62305 [5].
Deve-se considerar que normas técnicas estrangeiras, como a francesa NF C 17-102 [7] e a espanhola UNE 21186 [8], possuem abrangência limitada aos seus países e não são consideradas normas internacionais, ao passo que as normas ABNT possuem abrangência limitada ao Brasil.
O engenheiro que opta por projetar ou instalar um sistema em desacordo com as legislações e normas técnicas vigentes incorre diretamente no artigo 10, item V do Código de Ética Profissional [24], o qual cita “V) ante o meio: a) prestar de má-fé orientação, proposta, prescrição técnica ou qualquer ato profissional que possa resultar em dano ao ambiente natural, à saúde humana ou ao patrimônio cultural.” Vale lembrar que o profissional está sujeito a responder por suas escolhas.
Até mesmo na França, onde os sistemas ESEs são amplamente utilizados, existem restrições legais [25–29] que estabelecem situações nas quais o projeto do SPDA deve estar em conformidade com a norma internacional IEC 62305. Algumas restrições abrangem as instalações nucleares, áreas classificadas e instalações de navegação aérea, por exemplo.
A comunidade científica mantém um ceticismo fundamentado em bases teóricas e observações práticas em relação aos dispositivos ESEs. A discrepância na velocidade do canal ascendente e a ausência de inclusão em normas internacionais amplamente reconhecidas e incidentes em regiões propensas a receber uma maior quantidade de raios denotam preocupações significativas em relação ao uso do ESE. Além disso, as implicações éticas e legais para engenheiros que optam por sistemas ESEs em desacordo com as normas locais e internacionais são claramente delineadas. Portanto, é crucial que os profissionais da engenharia primem pela segurança e conformidade regulatória em seus projetos de proteção contra descargas atmosféricas, haja vista também as penalidades previstas pela ocorrência de acidentes causados pela não observância da regulação.
Referências
[1]M. A. Uman e V. A. Rakov, “A critical review of nonconventional approaches to lightning protection”, Bull. Am. Meteorol. Soc., vol. 83, no 12, p. 1809–1820, 2002.
[2]L. Pecastaing et al., “Discussion on ‘Experimental demonstration of the effectiveness of an early streamer emission air terminal versus a Franklin Rod’ [and Reply]”, IEEE Trans. Dielectr. Electr. Insul., vol. 23, no 1, p. 605–608, fev. 2016, doi: 10.1109/TDEI.2015.005764.
[3]V. Cooray, “The Similarity of the Action of Franklin and ESE Lightning Rods under Natural Conditions”, Atmosphere, vol. 9, no 6, p. 225, jun. 2018, doi: 10.3390/atmos9060225.
[4]ABNT, “NBR5419-3: Proteção contra descargas atmosféricas – Parte 3: Danos físicos a estruturas e perigos à vida.” 2015.
[5]IEC, Protection against lightning. Part 3, Physical damage to structures and life hazard, Ed. 2.0. Geneva: International Electrotechnical Commission, 2010.
[6]NFPA, “Standard for the Installation of Lightning Protection Systems”. 2023.
[7]AFNOR, “NF C17-102: Protection contre la foudre – Systèmes de protection contre la foudre à dispositif d’amorçage”. 2011.
[8]UNE, “UNE 21186:2011: Protección contra el rayo: Pararrayos con dispositivo de cebado”. 2011.
[9]AFNOR, “NF C17-102: Protection contre la foudre: protection des structures et des zones ouvertes contre la foudre par paratonnerre à dispositif d’amorçage”. 1995.
[10]K. Berger e E. Vogelsanger, “Photographische Blitzuntersuchungen der Jahre 1955…1965 auf dem Monte San Salvatore”, Bull. Schweiz. Elektrotechnischen, vol. 57, 1966.
[11]Y. Gao et al., “Three-dimensional propagation characteristics of the upward connecting leaders in six negative tall-object flashes in Guangzhou”, Atmospheric Res., vol. 149, p. 193–203, nov. 2014, doi: 10.1016/j.atmosres.2014.06.008.
[12]K. B. McEachron, “Lightning to the empire state building”, J. Frankl. Inst., vol. 227, no 2, p. 149–217, fev. 1939, doi: 10.1016/S0016-0032(39)90397-2.
[13]S. Yokoyama, K. Miyake, T. Suzuki, e S. Kanao, “Winter lightning on Japan Sea coast-development of measuring system on progressing feature of lightning discharge”, IEEE Trans. Power Deliv., vol. 5, no 3, p. 1418–1425, jul. 1990, doi: 10.1109/61.57984.
[14]M. M. F. Saba et al., “Lightning attachment process to common buildings”, Geophys. Res. Lett., vol. 44, no 9, p. 4368–4375, maio 2017, doi: 10.1002/2017GL072796.
[15]S. Visacro, M. Arcanjo, M. H. Murta Vale, e M. Guimaraes, “On therecords of current, electric field and high-speed vídeo of a recent negative downward lightning measured at Morro do Cachimbo Station”, em GROUND 2018 & 8th LPE, 2018.
[16]S. Visacro, M. Guimaraes, e M. H. Murta Vale, “Features of Upward Positive Leaders Initiated From Towers in Natural Cloud‐to‐Ground Lightning Based on Simultaneous High‐Speed Videos, Measured Currents, and Electric Fields”, J. Geophys. Res. Atmospheres, vol. 122, no 23, dez. 2017, doi: 10.1002/2017JD027016.
[17]M. M. F. Saba, D. R. R. Da Silva, J. G. Pantuso, e C. L. Da Silva, “Close View of the Lightning Attachment Process Unveils the Streamer Zone Fine Structure”, Geophys. Res. Lett., vol. 49, no 24, p. e2022GL101482, dez. 2022, doi: 10.1029/2022GL101482.
[18]G. L. S. Almeida, N. Alves, e J. M. B. Dantas, “Are there advantages in using Early Streamer Emission air terminals instead of a Franklin rod considering the upward positive leader propagation speed?”, apresentado em International Conference on Grounding & Lightning Physics and Effects, Belo Horizonte, 2023.
[19]Z. A. Hartono, “Clear Evidence of Lightning Strikes to a Building Installed with Multiple ESE Air Terminals”, em 2021 35th International Conference on Lightning Protection (ICLP) and XVI International Symposium on Lightning Protection (SIPDA),Colombo, Sri Lanka: IEEE, set. 2021, p. 1–6. doi: 10.1109/ICLPandSIPDA54065.2021.9627488.
[20]Z. A. Hartono e I. Robiah, “The ESE and CVM Air Terminals: A 25 Year Photographic Record of Chronic Failures”, em 10th Asia Pacific Lightning Conference, Krabi, Thailand, 2017.
[21]D. J. Cecil, D. E. Buechler, e R. J. Blakeslee, “Gridded lightning climatology from TRMM-LIS and OTD: Dataset description”, Atmospheric Res., vol. 135–136, p. 404–414, jan. 2014, doi: 10.1016/j.atmosres.2012.06.028.
[22]Ministério do Trabalho e Emprego, NR 10 – Segurança em instalações e serviços em eletricidade. 2004.
[23]ABNT, “NBR5410: Instalações elétricas de baixa tensão”. 2004.
[24]CONFEA, RESOLUÇÃO No 1.002 , DE 26 DE NOVEMBRO DE 2002. 2002.
[25]République Française, Arrêté du 1 octobre 2007 définissant les modalités relatives à la protection contre la foudre des installations nucléaires de base secrètes et des installations de mise en oeuvre et de maintenance associées aux systèmes nucléaires militaires. 2007.
[26]République Française, Circulaire du 24 avril 2008 relative à l’arrêté du 15 janvier 2008 relatif à la protection contre la foudre de certaines installations classées (Texte non paru au Journal Officiel). 2008.
[27]République Française, Arrêté du 11 décembre 2009 portant approbation de diverses dispositions complétant et modifiant le règlement de sécurité contre les risques d’incendie et de panique dans les établissements recevant du public (ERP). 2009.
[28]République Française, Installation de la navigation aérienne Guide d’aide à la protection contre la foudre. 2009.
[29]République Française, Arrêté du 4 octobre 2010 relatif à la prévention des risques accidentels au sein des installations classées pour la protection de l’environnement soumises à autorisation. 2010.
E como fica a responsabilidade técnica de um profissional que especifica e instala um sistema desses no Brasil? O CREA mediante denuncia de execução de serviço por profissional sem a devida observação das normas brasileiras pode penalizar este profissional?
A ausência de fiscalização efetiva no setor permite que muitos profissionais emitam RTs de forma negligente, colocando em risco a segurança de pessoas e patrimônios. Caso ocorram acidentes ou denúncias, condôminos podem ingressar com ações judiciais contra esses profissionais. A justiça, ao analisar os casos, exigirá que os profissionais justifiquem o não cumprimento das normas técnicas brasileiras. A falta de uma justificativa técnica válida poderá ser interpretada como imperícia, sujeitando o profissional a penalidades
Excelente noite para todos!
Muito bom o artigo. Pois, denota a importância crucial na elaboração de sistemas de PDA, com seleção segura, correta e adequada no sistema. O artigo é muito importante para àqueles que atuam no ramo e fora elucidado com clareza necessária a compreensão. Um forte abraço a todos e agradeço o excelente serviço prestado.
Agradecemos o seu reconhecimento, Trayahú!